🔲 Lido e o caminho de um gigante até a descentralização
Tornar-se a maior aplicação descentralizada em valor total alocado vem com grandes responsabilidades. Nas palavras de BK: "Ser rainha? A coroa é cara."
A Lido Finance é a maior aplicação descentralizada por valor total alocado (TVL, na sigla em inglês) do mercado cripto, exibindo US$ 25,6 bilhões em TVL no momento da escrita deste relatório, nos dados do DefiLlama.
Notadamente, a Lido foi a aplicação responsável por popularizar o modelo de liquid staking, ou staking líquido, fornecendo essa funcionalidade para os detentores de Ethereum (ETH).
Apesar da inovação trazida pela Lido, a aplicação passou por quebra-molas em sua jornada, como o acúmulo de mais de 30% de todo o montante de ETH em staking.
Esse evento levantou outras preocupações na comunidade de criptomoedas, como a centralização de poder da rede Ethereum nas mãos e as possíveis consequências desse resultado.
A Lido reconheceu a faca de dois gumes que o seu tamanho no mercado cripto representa, e tem agido para mitigar seus impactos através da criação de mecanismos tanto em seu sistema de governança quanto em seu sistema de staking.
O presente relatório tem como objetivo abordar a jornada da Lido rumo a um modelo mais decentralizado, os riscos desse trajeto e os impactos no ecossistema de finanças descentralizadas (DeFi).
Staking e o custo de oportunidade
Nas blockchains baseadas no modelo de consenso por prova de participação, usuários podem participar do processo de segurança da rede dedicando tokens nativos em um contrato inteligente. Esse processo é conhecido como staking.
Ao dedicar esses valores, que ficam travados, o usuário se torna um validador da rede, e seu papel é validar transações legítimas enquanto rejeita as transações maliciosas.
Em troca pela perda de liquidez dos ativos travados em favor da rede, os validadores são recompensados com um rendimento percentual baseado em quanto foi deixado em staking.
Traduzindo em um exemplo, usuários da rede Ethereum precisam travar 32 ETH em staking para atuar como validadores, e recebem em troca 4% de rendimento anual sobre esse valor.
Através do exemplo dado, dois problemas saltam aos olhos instantaneamente:
Na cotação atual, 32 ETH equivalem a mais de R$ 450 mil, um valor significativamente alto para se tornar validador;
Ao ficar dedicado em staking, esse valor não pode ser movimentado no ecossistema de finanças descentralizadas. Ou seja, o detentor de ETH deixa de auferir potenciais lucros, algo que é chamado de “custo de oportunidade”.
Nesse contexto, a Lido Finance surge para sanar ambos os problemas através do modelo de staking líquido.
Entendendo o impacto do staking líquido
Como visto, no modelo tradicional de staking os tokens ficam bloqueados no protocolo e não podem ser movimentados.
O staking líquido, por outro lado, permite que os usuários façam staking de seus tokens e ainda mantenham a liquidez desses ativos.
Na prática, o usuário recebe uma quantidade de tokens de staking líquido (LST, na sigla em inglês) equivalente ao montante que foi deixado em staking. Esses tokens, então, podem ser utilizados em diferentes aplicações do ecossistema DeFi.
Usando de exemplo a Lido e seu LST, o stETH: ao fazer staking de 2 ETH na plataforma, o usuário recebe 2 stETH, que podem ser utilizados em outras aplicações dentro de DeFi.
Isso não apenas soluciona o problema da liquidez, como também potencializa os ganhos, já que o usuário receberá as recompensas por staking e pelas interações com aplicações descentralizadas.
Além disso, o usuário participa da segurança da rede, já que o montante em ETH depositado será delegado para validadores.
Assim, a importância da Lido para o ecossistema Ethereum se faz clara, o que se traduz em números. De acordo com o painel “Lido Morning Coffee” no Dune Analytics, a Lido guarda 28% de todo o suprimento de ETH em staking.
Por isso, é necessário entender como essa aplicação funciona, especialmente a parte de tomada de decisão sobre como esse poder é conduzido.
Governança da Lido
A governança da Lido é gerida por uma Organização Autônoma Descentralizada, (DAO, na sigla em inglês), que permite aos membros da comunidade participar das decisões do protocolo por meio de um sistema baseado em um token de governança.
Na mecânica atual de governança, tudo começa com a discussão no fórum de pesquisa da Lido. Essa fase serve para ideias, propostas ou pedidos de grants, e as discussões geralmente duram sete dias.
Caso seja bem recebida pela comunidade na fase de discussão, a proposta é levada ao Snapshot, a área onde as votações ocorrem de fato.
Já que a Lido é governada pelo token LDO, são necessários 1.000 tokens LDO para criar uma proposta no Snapshot. Contudo, isso não é um impeditivo: caso o usuário não possua essa quantidade de tokens, é possível pedir a criação ao grupo Operations Workstream.
A ideia por trás da exigência de 1.000 tokens LDO é evitar spam de propostas, bem como propostas maliciosas.
No Snapshot, a proposta pode ser aprovada ou negada, com o segundo resultado extinguindo o processo. No caso de aprovação, sem a exigência de ações on-chain, a proposta pode ser considerada efetiva.
As votações no Snapshot ocorrem mensalmente, com a coleta das novas propostas e início dos processos de decisão, geralmente às quintas-feiras. A duração padrão das votações é de sete dias.
No entanto, muitas decisões tomadas pela governança demandam a tomada de decisão on-chain, onde a aprovação no Snapshot serve como uma fase de “peneira”.
Qualquer mudança no protocolo precisa ser aprovada por meio de votação, que pode acontecer de três maneiras:
Votação padrão no modelo Aragon: é necessário o apoio de pelo menos 5% do total de tokens LDO, não apenas dos tokens circulantes, e mais de 50% dos votos a favor. Esse modelo de votação se divide entre a fase principal, que dura 48 horas e permite votar entre “sim” ou “não”, e a fase de objeção, que dura 24 horas e permite apenas votar contrariamente — ou alterar o voto de “sim” para “não”;
“Easy Track” otimista: permite aprovar propostas menores, que não envolvem alterações no código do protocolo, de forma mais rápida. Contudo, elas podem ser vetadas caso 0,5% do suprimento total de LDO se oponha à votação. Além disso, apenas endereços autorizados podem iniciar essas votações. Esse modelo de votação foi criado para otimizar as operações do Comitê da Lido;
Votações emergenciais: a governança da Lido prevê votações onde não são necessárias as etapas de Snapshot e discussões no fórum de pesquisa. Para que uma votação emergencial ocorra, uma explicação deve ser dada antes ou imediatamente após o início da votação.
Além disso, a Lido DAO conta ainda com Comitês para agilizar processos de governança. Esses comitês são criados através do modelo de votação padrão: uma discussão no fórum leva à votação no Snapshot, e então à tomada de decisão on-chain.
Riscos diretos
É importante ressaltar que a Lido DAO tem poder sobre componentes essenciais do protocolo de staking, como:
Atualizações do código do protocolo, incluindo o contrato do stETH;
O contrato que controla a retirada do ETH (ainda em desenvolvimento);
Oráculos que garantem a precisão dos dados da camada de consenso;
Registro e gerenciamento dos operadores de nós;
Distribuição de recompensas entre operadores de nós.
Definição de taxas para operadores de nós e para o tesouro da Lido.
Isso significa que a Lido DAO tem controle direto sobre decisões que podem afetar os stakers e, indiretamente, a segurança da rede Ethereum.
Destacando o quão delicado é o modelo de governança, dois aspectos importantes são comprometidos caso a governança seja capturada por atores maliciosos:
Prejuízo aos holders de stETH: uma Lido DAO comprometida poderia manipular os saldos de stETH dos holders, como queimar tokens de um endereço e criar novos tokens em outro;
Integridade da rede Ethereum: o comprometimento da Lido DAO poderia manipular a lista de operadores de nós, criando um "cartel" de validadores, o que colocaria em risco a descentralização e a segurança da rede.
Sistema de governança dupla
Além disso, a Lido DAO ainda enfrenta um problema de “conflito de agência” entre os interesses dos stakers, que se tornam holders de stETH, e os detentores de LDO.
Tendo em vista que esses dois grupos nem sempre possuem os mesmos interesses, é possível que decisões dos detentores de LDO não favoreçam os detentores de stETH.
A solução para esse problema, proposta em abril no fórum de research da Lido, foi reduzir o poder de governança ao mínimo necessário e criar um sistema de governança dupla.
Nesse modelo, os detentores de stETH podem vetar decisões tomadas pelos detentores de LDO se houver um conflito de interesse.
A ideia é que, além dos detentores de LDO votarem, os detentores de stETH também tenham poder de veto, caso sintam que uma decisão é prejudicial para eles.
Em suma, a mecânica funciona da seguinte forma:
Detentores de LDO continuam praticando a governança;
Se um número suficiente de stETH holders bloquear uma decisão, o protocolo entra em "modo de veto", impedindo a execução da proposta, a menos que o veto seja levantado por uma nova votação entre os stETH holders.
Essa abordagem tenta equilibrar os interesses dos detentores de LDO e stETH, prevenindo que decisões arbitrárias passem sem a concordância de ambos os grupos.
Na proposta, também existem medidas para evitar que o poder de veto seja usado de forma abusiva, como a possibilidade de:
Impor um tempo de espera antes que uma decisão possa ser executada;
Expropriar stETH de quem abusar do veto.
Esse modelo, no entanto, não endereça as medidas emergenciais previstas na governança da Lido DAO. Foram propostos, então, comitês para tratar desses problemas:
Gate Seal Committee: esse comitê age como um freio de emergência, podendo parar os saques temporariamente caso haja uma ameaça de segurança. Ele é administrado por uma carteira multiassinatura composta por seis assinantes, e demanda três assinaturas para validar decisões. No entanto, seu poder é limitado e só pode ser usado uma vez antes de precisar ser renovado dentro da DAO;
Tiebreaker Committee: esse comitê entra em ação em cenários mais graves, como quando um processo fica travado, para garantir que ninguém seja impedido injustamente de sacar seu ETH em staking. Qualquer decisão tomada por este comitê precisa ser aprovada pela maior dos sub-comitês de governança;
Margin of Safety Committee: uma equipe de apoio que protege contra problemas desconhecidos que possam prejudicar o sistema de governança, proporcionando aos detentores de stETH tranquilidade enquanto o novo sistema é testado.
Essas medidas contribuem para mitigar o conflito de agência entre os detentores de LDO e os stakers, protegendo os usuários do protocolo contra decisões abusivas e promovendo a descentralização dentro do sistema de tomada de decisão.
‘Grande demais’ nem sempre é bom
Com a oferta inovadora do staking líquido, a Lido cresceu rapidamente em popularidade, algo que se traduziu no crescimento também rápido da quantidade de ETH em staking na plataforma.
Isso ocorreu, em grande parte, porque o protocolo se mostrava robusto o suficiente para tranquilizar investidores buscando deixar ETH em staking líquido.
Como foi dito, porém, ETH em staking se traduz em poder de validação na rede. Em suma, isso cria um problema, já que a retenção de grande quantidade do token ameaça a decentralização do Ethereum.
Em 2022, Danny Ryan, um pesquisador da Fundação Ethereum, publicou um texto falando sobre quais quantias de ETH acumulado representam ameaças à rede. O primeiro número salientado no texto foi 33%, ou um terço de todo o ETH em staking.
De acordo com Ryan, se um protocolo retém pelo menos 33% de todo o ETH usado para validar transações, ele se torna capaz de começar a manipular espaços nos blocos em proveito próprio. No mercado cripto, isso é conhecido pela sigla em inglês MEV, que significa valor máximo extraível.
De forma simples, MEV ocorre quando validadores conseguem manipular transações para lucrar com as movimentações feitas na blockchain.
Um exemplo comum é o frontrunning, que ocorre quando um validador identifica uma transação lucrativa sendo enviada, substitui a transação com uma que ele mesmo criou, e paga uma taxa de gas maior para garantir que sua transação seja executada primeiro.
Em outro texto publicado por Mike Neuder, outro colaborador da Fundação Ethereum, foram identificados três vetores de ataque dentro da estrutura da Lido:
O primeiro é a possibilidade que os detentores de stETH possuem de atrapalhar o processo de governança através do poder de veto;
O segundo é a capacidade que os operadores de nós possuem de sofrerem penalidades — conhecidas como slashing — propositalmente durante o processo de validação, o que acarretaria na perda de ETH pelos stakers e desestabilizaria o preço dos tokens stETH e LDO;
O terceiro é a capacidade que os detentores de LDO possuem de entrar em conluio e tomar para si a governança da Lido. Isso abriria a possibilidade de alteração nos contratos inteligentes.
Assim, a amplitude de vetores de ataque se soma à ameaça que o acúmulo de ETH na Lido representa. Em dezembro de 2023, o protocolo superou os 32% de ETH em staking, deixando a comunidade de criptomoedas extremamente preocupada.
É importante ressaltar, contudo, que tentativas de evitar o acúmulo de ETH na Lido foram aplicadas. Em junho de 2022, uma proposta foi votada para limitar a quantidade de Ether em staking que poderia ser alocada na plataforma.
A proposta, no entanto, foi rejeitada. Além disso, a Lido propositalmente evitou fechar parcerias com outras aplicações descentralizadas, com o objetivo de se tornar menos atrativa para investidores de ETH.
Os esforços renderam frutos. Desde dezembro, a participação da Lido na quantidade de ETH em staking caiu mais de 5%, atualmente parada em 27,8% nos dados do painel “Lido Morning Coffee” dentro do Dune Analytics.
Entretanto, a luta pela descentralização travada pela Lido não termina com esses esforços. O protocolo fez avanços significativos no último ano, com duas notáveis menções: a tecnologia de validadores distribuídos e o módulo de staking comunitário.
Distributed Validator Technology
Distributed Validator Technology (DVT), ou tecnologia de validadores distribuídos, é um conceito que visa aumentar a segurança e descentralização nas redes que utilizam o modelo de consenso por prova de participação, como o Ethereum.
No modelo de DVT, múltiplos operadores de nós trabalham em conjunto na validação de transações, em vez de apenas um operador de nó executar o papel de validador.
Esse modelo oferece dois grandes benefícios:
O processo de validação de blocos ganha uma camada adicional de descentralização, já que é necessário o consenso de dois terços dos operadores de nó para que um bloco seja validado;
Ao dividir o processo de validação entre diversos operadores de nó, caso algum deles seja comprometido, o validador ainda se mantém atuante dentro da rede Ethereum.
Em abril deste ano, a Lido ativou seu primeiro módulo DVT, utilizando tecnologia da Obol Network. No mês seguinte, foi adicionado o módulo que utiliza tecnologia da SSV Network.
Community Staking Module
O módulo de staking comunitário, ou community staking module (CSM), é um sistema que também trabalha na descentralização da rede Ethereum.
Atualmente, tornar-se um validador demanda o staking de 32 ETH e um processo que exige uma certa bagagem tecnológica.
Através do CSM, contudo, operadores podem se tornar validadores através da interface da Lido. Além disso, a quantia inicial de Ether para se tornar um validador através do CSM é de 2,4 ETH para começar, com validadores posteriores precisando apenas de 1,3 ETH.
Consequentemente, o número de validadores é aumentado, dificultando ainda mais a centralização dentro de um número limitado de agentes dentro da blockchain. Ademais, o número de stakers atuando sozinhos na rede Ethereum também tende a aumentar.
Conclusão
A Lido popularizou um conceito que até hoje é um dos pilares do ecossistema Ethereum e das finanças descentralizadas. O staking líquido possibilitou que usuários não precisem decidir entre auxiliar na segurança do Ethereum ou interagir com o ecossistema DeFi, podendo seguir ambos os caminhos simultaneamente.
Isso não garante, porém, um caminho livre de desafios. A estrutura da Lido precisou ser reinventada com o passar dos anos para mitigar vetores de ataque, e também evitar que a descentralização do Ethereum fosse comprometida pelo protocolo.
Notadamente, a Lido sugere ter aceitado o ônus de ser a maior aplicação descentralizada por valor total alocado, e tem dedicado esforços para atender usuários DeFi ao mesmo tempo em que não afeta a saúde do Ethereum.
Por fim, com a popularização de tecnologias como DVT e CSM, a tendência é que a Lido acrescente em seu roadmap ferramentas ainda mais sofisticadas para remediar potenciais casos de centralização do Ethereum através da diversificação no staking.
Links de apoio
Processo de governança da Lido: https://lido.fi/governance;
Modelo de governança dupla: https://blog.lido.fi/dual-governance-overview;
DVT explicado: https://blog.lido.fi/simpledvt-new-phase-for-lido-on-ethereum;
Debate sobre a centralização no Ethereum: https://blockworks.co/news/lido-centralization-debate-ethereum;
Concentração de ETH em staking na Lido em queda: https://cointelegraph.com/news/lido-ethereum-staking-market-share-below-30.
Antes de terminar, gostaríamos de lembrar que o conteúdo discutido aqui é estritamente informativo e destinado a fomentar a discussão geral. Não deve ser interpretado como recomendação financeira, fiscal ou conselho de vida para qualquer indivíduo. Encorajamos fortemente que você faça sua própria pesquisa e consulte profissionais qualificados.
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Encontrei um lugar que escreve do jeito que eu gosto de estudar.
Parabéns Modular!
Bora que bora Modular