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A Soberania do Protocolo: A China e o Futuro da Blockchain
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O século XXI consolida-se como a era das infraestruturas invisíveis, redes que organizam o fluxo de dados, valor, identidades e decisões sem que percebamos. Entre o físico e o digital, vivemos um mundo onde as fronteiras geográficas se dissolvem em fronteiras tecnológicas. As disputas territoriais continuam existindo, mas a disputa central migra para aquilo que coordena os territórios: sistemas de pagamentos, nuvens, inteligência artificial, plataformas de comunicação, cadeias logísticas automatizadas, protocolos de identidade digital.
A geopolítica muda de escala. O mapa global torna-se uma superfície dinâmica, reconfigurada por infraestruturas que não aparecem nos mapas, mas determinam o que os mapas permitem. É nesse tabuleiro que a China ocupa um lugar singular.
Desde 2013, com o anúncio da Belt and Road Initiative, o país transformou infraestrutura em instrumento geoestratégico: estradas, portos, fibra óptica, cabos submarinos, 5G, plataformas digitais. Mas, na última década, Pequim percebeu algo ainda mais profundo: controlar o mundo físico é importante, mas controlar o mundo lógico é definitivo.
Nesse cenário, diferentes camadas tecnológicas passam a desempenhar papéis críticos: a aceleração das inteligências artificiais, a necessidade crescente de armazenamento soberano de dados, e a demanda por sistemas que permitam verificar, coordenar e auditar relações sociais em escala. É aqui que a China identifica a peça-chave: a blockchain como a camada capaz de reorganizar confiança, valor e coordenação.
O ponto sensível que o governo chinês compreendeu é que, para além das aplicações financeiras, a blockchain é, no seu núcleo, uma tecnologia de coordenação social. Ela cria confiança, distribui verificabilidade e produz consenso entre entidades que não se conhecem.
Para a filosofia cypherpunk, a blockchain foi pensada como arma contra o Leviatã, um mecanismo de resistência a Estados centralizados e bancos centrais. Mas esse viés político não é intrínseco à tecnologia. A mesma ferramenta que pode ser antiestatal pode, com igual eficiência, tornar-se infraestrutura estatal soberana.
A China entendeu isso com clareza. Enquanto EUA e Europa debatiam regulação, volatilidade e “risco sistêmico”, Pequim vislumbrou a blockchain como componente de um projeto muito mais amplo: um sistema coordenado de poder, integrado a inteligência artificial, vigilância digital, moeda programável e plataformas nacionais. Em uma sociedade onde a tecnologia é ubíqua, o verdadeiro poder está nas mãos de quem define os protocolos que organizam a vida digital.
Partindo desse entendimento, o governo chinês não apenas desenvolveu sua própria arquitetura: propôs um modelo e, mais decisivo ainda, um padrão exportável. A BSN, sua blockchain estatal, e o e-CNY, sua moeda digital soberana, são duas faces da mesma estratégia: construir a primeira infraestrutura de coordenação estatal do século XXI, uma alternativa frontal ao paradigma “aberto e permissionless” que pauta a imaginação ocidental.
É por isso que a blockchain chinesa se torna a peça mais sutil, e talvez mais estratégica, na disputa contemporânea por hegemonia digital global.

Imagem de autória própria - criada com ChatGPT
Os Interstícios da História
A história da blockchain costuma ser narrada ao gosto ocidental como uma epopeia utópica: uma tecnologia criada para tirar o poder das mãos de Estados e bancos e entregá-lo aos cidadãos. Não por acaso, o bloco gênesis do Bitcoin registra um jornal britânico anunciando governos salvando bancos privados, uma crítica explícita ao sistema financeiro vigente.
Mas a história nunca é linear. Ainda que a blockchain tenha nascido com um viés específico, sua rápida apropriação pelo setor financeiro global adicionou camadas inesperadas ao seu percurso. Entre o público e o privado, entre a autonomia criptográfica e a integração institucional, a tecnologia encontrou um espaço ambíguo: suficientemente disruptiva para gerar novos mercados, suficientemente flexível para ser estatizada.
É nesse intervalo que a China percebeu algo que o Ocidente ignorou. Em 2014, quando o People’s Bank of China (PBoC) criou um grupo interno de pesquisa dedicado a uma “moeda digital soberana”, Pequim entendeu que podia separar a tecnopolítica do mito libertário. Não precisava da utopia cypherpunk, bastava reter o protocolo.
Ao longo da década seguinte, esse experimento se tornaria um projeto de Estado. A cronologia mostra que nada foi improvisado:
2014 → O PBoC inicia oficialmente o desenvolvimento do DCEP/e-CNY, nascido não do mercado, mas do banco central, já concebido como infraestrutura nacional.
2017 → O governo proíbe ICOs e fecha exchanges domésticas. Surge a primeira separação explícita entre “blockchain como tecnologia” (aceitável) e “cripto como ativo privado” (inaceitável). A distinção é ideológica, não técnica.
2019 → O State Information Center (SIC), ligado à NDRC, anuncia a criação da Blockchain-based Service Network (BSN), uma blockchain estatal estruturada desde o início como infraestrutura pública.
25 de abril de 2020 → Lançamento da BSN para uso “público”, coadministrada por China Mobile, China UnionPay e Red Date Technology. É a mais ambiciosa iniciativa governamental de blockchain já apresentada. No mesmo ano, o e-CNY entra em testes massivos em Shenzhen, Suzhou, Xiong’an e Chengdu, com distribuição de moeda digital diretamente à população.
2021 → O governo intensifica a repressão à mineração e, em 24 de setembro, declara ilegal todo tipo de transação com criptomoedas privadas.
Lida assim, em linha reta, a estratégia torna-se nítida: Enquanto o Ocidente debatia volatilidade e regulação, Pequim avançava de maneira calculada, transformando uma tecnologia de dissidência em arquitetura de Estado.

O Nascimento da BSN: “Blockchain Pública” Sem o Público
Quando a BSN foi inaugurada em 2020, a retórica era sedutora: infraestrutura aberta, padronizada, interoperável, acessível a desenvolvedores. Mas o diagrama institucional contava outra história. A BSN Development Association, responsável pela governança da rede, é liderada pelo State Information Center (SIC), órgão estatal dedicado à política econômica e tecnológica. Os validadores e operadores da rede, os chamados Public City Nodes e Permissioned Cloud Nodes, não são voluntários anônimos espalhados pelo mundo: são entidades registradas, aprovadas e rigorosamente rastreáveis.
A arquitetura combina três elementos centrais: chains permissionadas, versões adaptadas de redes públicas (nas quais tokens e mecanismos de incentivo são removidos) e um backbone operado por China Mobile e UnionPay, duas gigantes estatais.
Para compreender a sofisticação do arranjo, vale recorrer ao conceito de simulacro, do filósofo Jean Baudrillard. A China não falsifica a descentralização, ela a simula.
Todos os elementos simbólicos estão presentes: a linguagem de uma rede aberta, a compatibilidade com frameworks públicos, a estética visual das blockchains globais. Contudo, o significado foi deslocado. A descentralização aparece como superfície, não como estrutura.O vocabulário permanece, mas o pragmatismo muda.
A China reencena a blockchain, mas sem descentralização, sem autonomia. A BSN prova que a linguagem da descentralização pode ser estetizada e neutralizada, transformando-se em instrumento de centralização. No fim das contas, a China não destruiu a blockchain, apenas a domesticou.
Indo além, podemos entender a real ambição geopolítica: exportar o padrão da “descentralização controlada”.
Em 2021, surge a versão internacional da BSN, uma adaptação orientada a padrões neutros, pensada para circulação global. Seu objetivo é explícito: oferecer a países parceiros uma blockchain:
Barata
Sem tokens
Com governança centralizada
Com compliance nativo
E prontamente aplicável a usos governamentais
É a solução ideal para Estados que desejam “modernização digital sem caos”, ou seja, os benefícios técnicos da blockchain sem a instabilidade política da descentralização. A China exporta não apenas tecnologia, exporta um modelo político de infraestrutura.
Assim como nas décadas anteriores os Estados Unidos exportaram o TCP/IP e o dólar como pilares de sua hegemonia, a China tenta exportar aquilo que paradoxalmente podemos nomear de “descentralização administrada”: um padrão técnico que preserva a estética da autonomia enquanto garante o controle estatal.

O Que a China Revela: O Destino Político da Blockchain
Quando Satoshi publicou o white paper em 2008, imaginou um sistema capaz de escapar ao Estado. Mas, ironicamente, um dos principais atores globais entendendo o potencial transformador da blockchain é justamente um Estado, e o Estado mais centralizado do século XXI.
A China entende a arquitetura da blockchain, possibilitando a criação de uma tecnologia onde a descentralização é aparência e a soberania se expressa como um conjunto de APIs.
Se o Bitcoin foi a tentativa de dissociar a coordenação social da figura do Estado, a BSN realiza o movimento inverso: um Estado que absorve o protocolo, delega-lhe funções operacionais e, ao mesmo tempo, esvazia o papel do indivíduo. Um Estado que se descentraliza tecnicamente para recentralizar-se politicamente.
No fim das contas, as discussões sobre regulação e privacidade são apenas a superfície visível de uma transformação mais profunda. A China escolheu para si um papel inédito: o de redefinir a blockchain como tecnologia de gestão social.
Ao absorver o protocolo, ela altera o horizonte político da própria tecnologia. Não é apenas uma escolha entre modelos, é um sinal claro de que a China decidiu escrever sua própria gramática da modernidade digital. E agora, inevitavelmente, o mundo terá de responder a essa escrita.



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