A participação da América Latina em Governanças da web3
Desbravando a Governança Web3 na América Latina: Desafios, Oportunidades e Perspectivas de Contribuidores do Assunto.
A web3 trouxe consigo um universo de possibilidades e inovações, especialmente no campo da transparência e da descentralização. Nesse contexto, a governança de protocolos na web3 assume um papel de extrema relevância, uma vez que as decisões tomadas nesses ambientes podem moldar o futuro de todo o ecossistema cripto, afetando não apenas os projetos e protocolos, mas também os usuários.
Em outras palavras, a governança de protocolos pode, literalmente, definir o que conhecemos por web3, ainda que, muitas vezes, indiretamente.
Nesta pesquisa embarcaremos em uma jornada para compreender a importância da governança web3 na América Latina, com visões de pessoas dedicadas a trazer esse tema para o centro das discussões na região. Exploraremos os desafios enfrentados, as iniciativas em andamento e as perspectivas para o futuro das DAOs e da governança descentralizada na América Latina. Afinal, a participação ativa da região é fundamental para garantir que as decisões que impactam a web3 sejam tomadas de forma coletiva e representativa, refletindo não só o posicionamento das baleias do mercado, mas também as necessidades e aspirações dos latino-americanos.
Mas Afinal, o que é Efetivamente “Governança”?
A governança na web3 se refere ao processo de tomada de decisões que ocorre em protocolos e projetos descentralizados, onde as regras e mudanças são decididas de forma coletiva pelos participantes. Essa governança é geralmente realizada por meio de DAOs (Organizações Autônomas Descentralizadas), que são estruturas organizacionais baseadas em contratos inteligentes que operam de forma autônoma, sem a necessidade de uma autoridade central.
Em termos simples, uma DAO é uma comunidade que partilha do mesmo interesse - podendo esse interesse ser o sucesso de um protocolo, o desenvolvimento de uma marca de roupa ou até a compra de uma ilha - e que possui uma "conta bancária" compartilhada, no caso uma carteira pública compartilhada. O assunto hoje é exclusivamente governança, então, se quiser saber mais sobre DAOs, veja o seguinte vídeo.
Importante entender que o termo "governança web3", pode ser utilizado tanto para decisões de protocolos descentralizados (e.g. Maker e Uniswap), como também para se referir a governança de redes (e.g. Ethereum, Polygon e Arbitrum). O escopo é muito grande quando o assunto é web3 e, muitas vezes, por ser muito novo, ainda sequer existe um "limite".
Retomando, a importância da governança na web3 reside no fato de que ela é responsável por definir como um protocolo ou projeto irá evoluir, quais mudanças serão implementadas, como os recursos serão alocados, dentre outros pontos. Em outras palavras, a governança determina o caminho que a tecnologia cripto irá seguir.
Guiriba, pesquisador de DAOs e contribuidor no ecossistema Nouns e na ShapeShiftDAOBR também acredita nessa mesma linha. Segundo ele, governanças são “as Ágoras dos protocolos multimilionários que usamos todos os dias (...) a governança é tão importante quanto o código desenvolvido para mantê-lo, porque caso seja explorada por um agente de má-fé, todo seu sucesso pode ir por água abaixo”.
Claro que, à primeira vista, grande parte das decisões de governança não trazem um impacto tão grande assim por estarem limitadas ao escopo de um só "protocolo", mas com uma análise mais atenta, é possível perceber o impacto que a governança pode ter. Vejamos exemplos.
O fork da The DAO (primeira organização autônoma formada na Ethereum), que literalmente formou a Ethereum que conhecemos hoje e a Ethereum Classic, foi uma espécie de atuação de governança nos primórdios da rede. Ou seja, foi graças ao apoio da comunidade na época que o fork da rede foi vitorioso.
Não havia nenhuma obrigação para que a comunidade adotasse a rede com o fork (atual Ethereum). A adoção veio naturalmente após a maior parte dos contribuidores da The DAO apoiarem a ideia do fork e seguirem em uma chain sem o hack que levou consigo cerca de 5% de todo o ETH em circulação na época.
Outro exemplo impactante quando o assunto é governança são algumas das votações da Nouns, uma DAO cujo objetivo final é proliferar a cultura nounish (você muito provavelmente já viu os óculos da Nouns, os noggles, em algum lugar). Recentemente a governança dessa organização decidiu que vai implementar um novo mecanismo, apelidado de “rage quit”.
Com esse mecanismo, que teve sua implementação muito debatida e decidida em votação da DAO, os membros poderão “sair” da DAO e levar uma parte do dinheiro investido, evitando que ataques de governança possam prejudicar a integridade da organização. Em resumo, o rage quit nasceu para proteger a comunidade de baleias, segundo o próprio fundador da Nouns.
Mas esse é só um dos lados (e talvez o mais emocionante) de governanças web3. Não há como negar que a maioria das discussões e decisões não são tão animadoras como essas, já que, via de regra, se tratam de particularidades dos protocolos. Como exemplo as últimas propostas da ENS DAO:
Muito provavelmente, se você não está envolvido com o protocolo da ENS, você sequer consegue entender os títulos das propostas acima, já que elas envolvem necessidades muito específicas do protocolo, como eleições internas da organização.
Apesar disso, é crucial lembrar que a governança na web3 não é apenas uma questão técnica ou empresarial, mas uma questão de inclusão e participação horizontal. Ou seja, a web3 trouxe a possibilidade de horizontalização em tomadas de decisões, onde mudanças em protocolos descentralizados são discutidas abertamente e "qualquer um" pode expressar sua opinião e contribuir com a discussão.
Governança na América Latina
Apesar da importância desse processo, mesmo com o crescimento exponencial do ecossistema cripto na América Latina, a governança na web3 ainda é um assunto pouco discutido. A participação de pessoas da América Latina em DAOs e processos de governança da web3 no geral ainda é baixa.
Uma das principais barreiras que dificultam uma participação mais ativa e inclusiva na governança da web3 é a falta de acessibilidade. Os altos critérios de participação, como a posse de uma quantidade significativa de tokens para propor mudanças ou votar em decisões, excluem muitos indivíduos da região que não têm acesso a grandes quantias de recursos financeiros. Claro que hoje já existem algumas soluções para amenizar isso, como o modelo de Delegação de Votos, mas ainda assim elas não resolvem o cerne da questão.
Ainda na questão da falta de acessibilidade, outra dificuldade é a barreira do idioma. A grande maioria dos documentos e pesquisas sobre governança web3 ainda estão em inglês e, infelizmente, a estimativa é que menos de 15% de toda a população da América Latina possua proficiência no idioma.
No entanto, a relevância do tema não pode ser subestimada. As decisões tomadas por meio da governança web3 podem impactar diretamente a vida de milhões de latino-americanos, influenciando desde questões financeiras e regulatórias, até a inclusão de comunidades historicamente desbancarizadas no que se conhece por web3.
Neste contexto, a participação da América Latina em discussões e decisões que moldam o futuro dos protocolos e projetos cripto é essencial. A região possui necessidades específicas, um mercado cripto distinto e uma população que depende cada vez mais das soluções oferecidas pelas criptomoedas.
Isso porque, enquanto para alguns as criptomoedas podem ser apenas uma ferramenta de especulação financeira, para outros, como os latino-americanos, elas representam uma necessidade real.
Romper com a apatia e a falta de interesse em votações tradicionais já é um desafio em si. Na web3 essa complexidade é ampliada, mas é também esse ambiente que oferece maiores oportunidades de criar soluções mais democráticas e inclusivas.
Apesar desse lado positivo, uma questão básica surge à mente: “por que governança web3 ainda não é um tema tão discutido na América Latina?”
Guiriba defende que a dificuldade existe porque “nem todos querem viver de cripto e/ou são apaixonadas pelo ethos de cripto, relacionando a descentralização, experimentação, etc. Por isso, uma pequena parcela realmente tem a perspectiva de ajudar a construir o ecossistema”. Segundo ele, a dificuldade é mundial, não só da América Latina, uma vez que poucas pessoas chegam em cripto com uma experiência anterior em atividades de DAO, dentre elas: coordenação social e mecanismos de tomada de decisão.
Já para Noa, Estrategista de Governança do SEED Latam, apesar do crescimento do ecossistema cripto na América Latina, ainda existe um significativo desconhecimento e falta de compreensão quando o assunto são novas tecnologias e seu impacto. E segue: “a descentralização, a transparência e a participação ativa dos usuários na tomada de decisões contrastam com a estrutura hierárquica e centralizada de muitos governos na região; assim, pergunto-me, há uma resistência à mudança?”.
Realmente não há como esconder que estruturas de governo tradicionais na América Latina são um assunto um tanto conturbado, já que contam, historicamente, com períodos de autoritarismo, centralização política e até golpes de poder. Acontecimentos que, certamente, causaram impactos nos cidadãos e em seus pensamentos sobre estruturas de poder e seu papel na política. Noa também pontua que, até o momento, a adoção cripto na América Latina ainda é muito focada no aspecto financeiro e de investimentos, enquanto que “governança” demanda um esforço ainda maior em educação e estudo para a sua compreensão.
Nessa mesma linha também segue a opinião de Eliza, que faz parte do grupo de Automação das Operações de Governança na MakerDAO. Segundo ela, ainda há um desconhecimento das pessoas da América Latina quando o assunto é “governança web3”, já que, na região, as criptomoedas e blockchain são principalmente associadas à especulação financeira e volatilidade, dada à instabilidade financeira existente em toda a América Latina.
Olhando sob outro ângulo, Gonna, que faz parte do Conselho de Grants da Optimism, defende que os primeiros experimentos de governança focaram mais em um sistema de votação por token, o que acarretou em uma concentração de poder nas mãos de baleias. Contudo, segundo sua fala, ainda que os grandes capitais continuem participando de governança web3, agora estamos entrando em um momento onde muitos experimentos de governança buscam não apenas a participação do poder econômico, mas também do usuário.
Joxes, contribuidor do SEED Latam, delegado da Optimism e pesquisador na Wonderland complementa essa visão com algo que não há como negar, que “99% dos sistemas de governança são baseados em uma forma de plutocracia, o que faz com que a criação espontânea de espaços formados por usuários dessas regiões seja altamente improvável”. São vários os exemplos de governança web3 que só são descentralizados na teoria (do protocolo para fora), mas com uma análise aprofundada na documentação do projeto percebe-se que essa descentralização é só aparente.
Netrim, contribuidor do SEED Latam também levanta uma importante discussão, de que governanças web3 não costumam ser remuneradas, demandando que o usuário não só esteja já estabelecido na web3, mas também que possua meios de se sustentar ao longo do tempo, algo não muito comum, especialmente em um mercado de baixa.
Apesar de alguns protocolos já terem implementado mecanismos de incentivo de governança, como a MakerDAO e a Optimism, essa é uma dificuldade bastante emblemática e debatida no ecossistema de DAOs atualmente. Várias são as discussões sobre remuneração de participantes ativos em governança. O próprio SEED Latam trouxe o assunto para discussão dentro da Arbitrum DAO, defendendo que um sistema de incentivos aos delegados é essencial para manter e aumentar o comprometimento e a participação na governança.
Avançando, a falta de acessibilidade é outro ponto fundamental para ser discutido dentro de governanças web3 na América Latina, seja essa em razão do idioma, capital financeiro, falta de incentivos, ou qualquer outro fator. A questão (para reflexão interna) é então: “Como fazer com que as governanças web3 sejam mais acessíveis para pessoas da América Latina?”
A primeira coisa que vem à mente com essa questão é: educação.
Segundo Eliza, a educação sobre blockchain e governança é fundamental para promover a participação e o debate na região. Na mesma linha se posiciona Noa, que levanta a necessidade de maior divulgação de programas de educação sobre governança web3 na América Latina, para que o assunto chegue a mais pessoas envolvidas com o ecossistema.
O contribuidor do SEED Latam, Netrim, vai além e levanta o problema estrutural. Sua ideia é que a dificuldade de acesso gera o problema clássico das diferenças de base, a base com a qual todos começam não é a mesma, ou seja, a América Latina começa em desvantagem em todos os níveis.
Outra necessidade é a tradução de documentos, artigos e textos. Não há como negar a existência da barreira do idioma inglês na América Latina, então a tradução de materiais da web3, em especial de governança, é fundamental para que o assunto seja mais conhecido e também compreendido pelas pessoas. Como lembra o Estrategista de Governança no SEED Latam, Noa, hoje já existem alguns projetos que fazem esse trabalho na América Latina, por exemplo o próprio SEED Latam, o L2 en Español e o Optimism em Español, mas ainda há muito espaço para crescimento, já que a escassez de programas educacionais específicos sobre esses temas na América Latina é clara.
Para além, a exploração de outros modelos de governança também é um dos pontos de discussão no ecossistema. Hoje existem várias experimentações diferentes de governança pela web3, afinal cada organização possui suas particularidades e ainda é muito cedo para dizer que há algum modelo de governança “vencedor”.
O próprio modelo de Delegados - no qual os detentores de tokens podem delegar seu poder de voto a representantes escolhidos para votar “em seu nome” - possui suas dificuldades. Apesar de ter conquistado um rápido crescimento desde o fim de 2022 e hoje capturar quase metade de todos os votos do ecossistema:
Dentre essas dificuldades do modelo Delegado estão: (i) a barreira de acesso, que apesar de ser menor, ainda é consideravelmente alta; (ii) a discrepância de conhecimento que pode existir entre delegados e delegantes e; (iii) a dificuldade em escalabilidade. Na visão de Netrim, “Qualquer iniciativa em larga escala que supere esses dois pontos [informação e necessidade de capital] é a base para que a LATAM possa se integrar mais”.
Para Gonna, não basta o foco na educação, já que nem sempre os mais competentes são os que decidem em governanças (não só na web3). É necessário também o contato com os "capitais" necessários para ser conhecido no ecossistema, sejam eles financeiros e/ou de networking.
Isso porque, via de regra, delegações de voto acontecem para pessoas já conhecidas ao invés de para os mais capacitados. E complementa “é necessário ter uma coerência própria na política e nas regras de convivência [...] ou você simplesmente é amigo de um grande "capital" e tem a sorte de ser confiável para eles”.
E Como Será o Futuro da Governança Descentralizada na América Latina?
As perspectivas para o futuro são promissoras e com várias oportunidades. A América Latina é um dos locais com maior adoção cripto, contando com mais de 51% dos consumidores já tendo transacionado com criptomoedas, segundo estudo da própria Mastercard.
Noa diz estar animado para o futuro das DAOs e governança web3 na região, sua posição é de que, com “esforços coordenados para promover a educação, reduzir barreiras e incentivar a participação, essas tecnologias têm, para mim, o potencial de transformar a maneira como as decisões são tomadas e o governo é conduzido, contribuindo para um sistema mais inclusivo, transparente e democrático”. Da mesma forma, Eliza complementa, a “capacidade de oferecer uma alternativa transparente e equitativa para a tomada de decisões é um dos grandes atrativos das DAOs”.
Joxes defende que a necessidade de participação em governanças vai se tornar ainda mais evidente à medida que o ecossistema web3 se prova verdadeiramente útil para a América Latina. Para muito além de especulação e volatilidade, o ambiente web3 mostra como a descentralização e a participação ativa são os pilares fundamentais para a construção de um ecossistema mais inclusivo e transformador. E não há como negar que esse aprendizado é de grande valor em uma região marcada por incertezas políticas e monetárias.
Gonna ainda traz uma reflexão interessante: “A América Latina é uma grande usuária de criptomoedas, mas ainda não percebeu que é uma das maiores usuárias”. Ou seja, o potencial é grande, sendo uma questão de tempo até o mundo perceber isso.
Conclusão
Não há como negar que mais transparência é algo que todos os governos ao redor do mundo iriam se beneficiar. Talvez não seja hoje, nem amanhã, mas é graças ao trabalho de pessoas como as que contribuíram para a pesquisa de hoje que assuntos como governança e web3 se fazem cada vez mais presentes na América Latina.
Claro que ainda há um longo trabalho pela frente, que envolve educação, conhecimento, networking, maturação de mercado e outros esforços, mas a governança descentralizada ainda pode (e vai) desempenhar um papel fundamental em processos decisórios da América Latina.
Um agradecimento especial ao pessoal do SEED Latam e à CryptoChica por terem colaborado com essa pesquisa e também por estarem organizando o primeiro evento de governança da América Latina, o Governance Day, que será realizado em Buenos Aires no dia 12 de agosto.
O evento contará com palestras de pesquisadores e entusiastas de governança web3. Além disso, a Modular Crypto estará por lá palestrando sobre como a privacidade pode influenciar no futuro das DAOs.
Se estiver por perto, não deixe de participar!
Antes de terminar, gostaríamos de lembrar que o conteúdo discutido aqui é estritamente informativo e destinado a fomentar a discussão geral. Não deve ser interpretado como recomendação financeira, fiscal ou conselho de vida para qualquer indivíduo. Encorajamos fortemente que você faça sua própria pesquisa e consulte profissionais qualificados.